quinta-feira, 13 de março de 2014

Belém: entre os Tupinambá, Lisboa e Paris

Por Ivânia dos Santos Neves

Foto: Lariza Gouvêia
Na história ocidental, Belém é uma cidade que nasceu no século XVII para proteger a entrada da Amazônia, das invasões francesas, como se nesta região não vivesse ninguém. A cidade se organizou a partir da construção de um forte, assim como tantas outras ao longo do Amazonas. Viviam naquele território alguns grupos indígenas, que, num primeiro momento ajudaram na construção da cidade.
Como aconteceu no litoral sudeste, no Pará e no Maranhão vivam muitas sociedades Tupinambá e elas foram as primeiras contactadas pelos portugueses. A Igreja Católica, depois da experiência no Rio de Janeiro e na Bahia já havia elaborado dispositivos mais sofisticados para lidar com os Tupinambá no século XVII. Estes índios foram perseguidos pelos portugueses e muitos foram exterminados e uma boa parte se rendeu à catequese e se transformou na população pobre da cidade. O fato é que no início do século XIX já não existiam mais sociedades Tupinambá no entorno da cidade.
A influência destes índios, porém, ainda hoje é bastante evidente na cultura da cidade. Se não podemos ver a memória Tupinambá materializada na arquitetura dominante nos centros históricos, podemos pensá-la materializada, por exemplo, no tradicional “Almoço do Círio de Nazaré”. 
O Círio de Nazaré é a maior procissão religiosa do Brasil e no segundo domingo do mês outubro costuma reunir na cidade mais de um milhão de pessoas. Depois da procissão, como componente importantíssimo da identidade paraense, acontece o almoço do Círio. E apesar do Círio ser um ritual católico, este almoço é absolutamente indígena. Regados ao molho de tucupi, vários pratos regionais, que tem por base a culinária indígena são servidos. Também acompanham uma grande fartura de doces típicos da região. E, ainda que se trate de uma festa católica, cuja procissão se arrasta pelas ruas onde o sistema colonial levantou seu patrimônio histórico, é em grande medida no almoço do círio que o paraense materializa discursivamente sua identidade.
Qualquer pessoa que visite a cidade, independente do período do ano, vai conhecer a culinária paraense. À base de peixes e camarões regionais, a comida materializa a identidade paraense. E, inegavelmente, como acontece em muitas cidades da Amazônia, nela aparece a influência indígena.
A cidade de Belém é constituída por dois centros históricos, o primeiro, que se criou em torno do Forte do Castelo apresenta uma influência notadamente portuguesa. Há muitas igrejas antigas e muitos casarões coloniais. Quem chega à cidade pelo rio, pode observar esta forte influência cristã e colonial que constitui esta parte da cidade. No bairro denominado Cidade Velha, ainda hoje algumas de suas estreitas ruas são recobertas por paralelepípedo. Esta parte da cidade é mais lisboeta e nela podemos perceber uma memória colonialista cristã.
Em uma outra região histórica, podemos ver uma Belém mais afrancesada. Sob os efeitos da Belle Époque tardia na região, proporcionada pela extração da borracha, nesta região da cidade existem verdadeiras étoiles parisienses. A Praça da República é um bom exemplo, dela saem várias avenidas, algumas bem largas, em muitas direções. Também nesta praça se localiza um dos pontos turísticos principais da cidade, o Teatro da Paz. Nesta parte da cidade, que começou a ser construída no final do século XIX, já não encontramos mais tantas igrejas como na Cidade Velha. É possível ver uma clara influência do sistema colonial, sem a presença intensa do cristianismo. Ainda que o Brasil já fosse um país independente, a dependência desta herança cultural da colonização européia continuou erguendo seus prédios históricos na cidade.
O título de Paris na América[1], no início do século XIX, tão aclamado pela sociedade da cidade mostrava como o discurso do colonizador havia se estabelecido na cidade. Era necessário chegar a um nível superior dentro da tradição ocidental e Portugal, no final do século XIX não representava mais o modelo de metrópole. Muitos anos depois da Independência, a cidade elege Paris como modelo de urbanidade, mais luzes e menos igrejas. Neste cenário, ficava bem difícil estabilizar qualquer discurso indígena na memória oficial da cidade. Ainda hoje, para a maioria dos intelectuais da cidade, quando se fala em patrimônio, não há dúvida de que se está falando da Belém portuguesa ou da Belém francesa.
As cidades brasileiras mais antigas compõem a cena da arquitetura católica e colonial no Brasil. Para Canclini (2006:160):


O patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores oligárquicos, quer dizer, o tradicionalismo substancialista. Foram esses grupos – hegemônicos na América Latina desde as independências nacionais até os anos 30 deste século, donos “naturais” da terra e da força de trabalho das outras classes – os que fixaram o alto valor de certos bens culturais: os centros históricos das grandes cidades, a música clássica, o saber humanístico.

Hoje, Belém se constitui com seu Centro Histórico e incontestavelmente ele faz parte da identidade da cidade. Mas, existe um lugar em que há um escape da arquitetura colonial e cristã, trata-se da maior feira ao ar livre da região, o Ver-o-Pêso. Lá já foi palco da Cabanagem, uma revolta popular contra o Império brasileiro. Vários governos já tentaram mudar sua dinâmica. Em muitos momentos as políticas públicas já deixaram  a feira literalmente entregue aos ratos e às baratas. Já ergueram no meio do Ver-o-Pêso o Mercado de Ferro, o Mercado de Carne, cujas singularidades arquitetônicas são inquestionáveis para um padrão estético ocidental. É uma longa história. Mas, é o movimento dos barquinhos, trazendo verduras, frutas, peixes e todo o colorido, pintando em suas barracas uma grande aquarela amazônica, que deixa ver a forte memória indígena viva no cotidiano de Belém. Lá também é o lugar em que se compram alguns artigos da culinária paraense incorporados da tradição indígena como a farinha, o tucupi, o jambu...
Essas águas, que contornam o Ver-o-Pêso são algumas das principais ruas da região e dão conta de uma memória mais antiga que a colonial. Afinal, esses rios que desenham a Amazônia, foram primeiro acarinhados pelas embarcações das sociedades indígenas que por aqui viviam. Estas ruas eram trafegadas por aqueles primeiros Tupinambá que estavam na beira do rio, quando os primeiros portugueses chegaram.
Foto: Shirley Penaforte
Hoje o Ver-o-Pêso é cartão postal da cidade e figura entre as dez maravilhas arquitetônicas do Brasil. Apesar de um Centro Histórico exuberante, de todos os edifícios construídos no período da Belle Èpoque, da Igreja e dos militares, o Ver-o-Pêso é algo que escapa, que desestrutura um discurso patrimonialista de conservação. Suas paredes não são de mármore, seus feirantes não pertencem às classes dominantes, os barquinhos que por lá trafegam são de pessoas do povo e muitos deles devem ser descendentes daqueles Tupinambá que foram incorporados à população das cidades..

Olhando pelo avesso

Foto: Shirley Penaforte
O significado que a feira do Ver-o-Pêso tem no Estado do Pará, já que é o ponto de chegada das pequenas embarcações que vêm do interior, mostra como as estruturas dos discursos dominantes deixam brechas. Afinal, as pessoas estão aí, escrevendo cotidianamente uma história nova, que não se molda aos princípios da erudição ocidental transposta para o continente americano. A estrutura de “murta”, do mercado do Ver-o-Pêso, pode perfeitamente simbolizar a fragilidade material da arquitetura dos índios Tupi, para lembrar Viveiro de Castro, mas há séculos ela resiste ao “mármore” da resistente estética européia.

Nossa idéia de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore, não de murta: museu clássico antes que jardim barroco. Entendemos que toda sociedade tende a preservar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensar que é necessário uma pressão violenta, maciça, para que ela se deforme e se transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. [...] Talvez, porém, para sociedades cujo (in)fundamento é a relação aos outros, não a coincidência consigo mesmas, nada disso faça o menor sentido. (VIVEIRO DE CASTRO: 2007, 195).

            Talvez se a Belém da época dos Tupinambá exibisse edificações como as de Machu Picchu dos Incas, no Peru, a consistência da arquitetura, que resiste aos séculos, fizesse lembrar que outras civilizações já viveram nesta região. Reproduzimos a cultura européia em nossas vidas e em nossas cidades e nem sequer negociamos uma fronteira cultural em que possamos nos particularizar como uma outra possibilidade de civilização. Talvez se olhássemos com mais atenção para os discursos que se materializaram no Brasil, pudéssemos encontrar um novo caminho, que não nos colocasse nem como colônia, nem como metrópole. Mas parece que ficamos presos ao modelo instituído pelo colonizador e tão apaixonadamente administrado por nós, que estamos nas academias ou nos cargos políticos das grandes cidades administrando esta memória colonial.
           O discurso se materializa nos corpos, nas telas, na arquitetura, na comida. Ele vai muito além da palavra falada. Os dispositivos que instituíram o sistema colonial foram bastante rigorosos e estiveram presentes nas mais diferentes materialidades. Quando falamos sobre a história das sociedades indígenas é quase impossível não esbarrar nestas estratégias do sistema colonial, que atualmente são administradas por nós mesmos. Agora, somos obrigados a pensar no que estamos fazendo com o que fizeram da gente. Por outro lado, por mais violentos e rigorosos que tenham sido estes dispositivos sempre houve quem resistisse a eles. O olhar como gesto interpretativo estabilizou discursos, mas é também a partir do seu deslocamento que podemos, talvez, quem sabe escrever uma outra história, onde não haja um único e absoluto discurso dominante.



[1] No final do século XIX, por importar um modelo cultural parisiense, que estava presente nas roupas, na arquitetura, nas produções artísticas, coube à cidade de Belém o título de Paris na América.