Foto: Lariza Gouvêia |
Como aconteceu no litoral sudeste, no Pará e no Maranhão vivam muitas
sociedades Tupinambá e elas foram as primeiras contactadas pelos portugueses. A
Igreja Católica, depois da experiência no Rio de Janeiro e na Bahia já havia
elaborado dispositivos mais sofisticados para lidar com os Tupinambá no século
XVII. Estes índios foram perseguidos pelos portugueses e muitos foram
exterminados e uma boa parte se rendeu à catequese e se transformou na
população pobre da cidade. O fato é que no início do século XIX já não existiam
mais sociedades Tupinambá no entorno da cidade.
A influência destes índios, porém, ainda hoje
é bastante evidente na cultura da cidade. Se não podemos ver a memória
Tupinambá materializada na arquitetura dominante nos centros históricos,
podemos pensá-la materializada, por exemplo, no tradicional “Almoço do Círio de
Nazaré”.
O Círio de Nazaré é a maior procissão religiosa do Brasil e no
segundo domingo do mês outubro costuma reunir na cidade mais de um milhão de
pessoas. Depois da procissão, como componente importantíssimo da identidade
paraense, acontece o almoço do Círio. E apesar do Círio ser um ritual católico,
este almoço é absolutamente indígena. Regados ao molho de tucupi, vários pratos
regionais, que tem por base a culinária indígena são servidos. Também
acompanham uma grande fartura de doces típicos da região. E, ainda que se trate
de uma festa católica, cuja procissão se arrasta pelas ruas onde o sistema
colonial levantou seu patrimônio histórico, é em grande medida no almoço do
círio que o paraense materializa discursivamente sua identidade.
Qualquer pessoa que visite a cidade, independente do período do ano, vai
conhecer a culinária paraense. À base de peixes e camarões regionais, a comida
materializa a identidade paraense. E, inegavelmente, como acontece em muitas
cidades da Amazônia, nela aparece a influência indígena.
A cidade de Belém é constituída por dois
centros históricos, o primeiro, que se criou em torno do Forte do Castelo
apresenta uma influência notadamente portuguesa. Há muitas igrejas antigas e
muitos casarões coloniais. Quem chega à cidade pelo rio, pode observar esta
forte influência cristã e colonial que constitui esta parte da cidade. No
bairro denominado Cidade Velha, ainda hoje algumas de suas estreitas ruas são
recobertas por paralelepípedo. Esta parte da cidade é mais lisboeta e nela
podemos perceber uma memória colonialista cristã.
Em uma outra região histórica, podemos ver uma Belém mais afrancesada.
Sob os efeitos da Belle Époque tardia
na região, proporcionada pela extração da borracha, nesta região da cidade
existem verdadeiras étoiles
parisienses. A Praça da República é um bom exemplo, dela saem várias avenidas,
algumas bem largas, em muitas direções. Também nesta praça se localiza um dos
pontos turísticos principais da cidade, o Teatro da Paz. Nesta parte da cidade,
que começou a ser construída no final do século XIX, já não encontramos mais
tantas igrejas como na Cidade Velha. É possível ver uma clara influência do
sistema colonial, sem a presença intensa do cristianismo. Ainda que o Brasil já
fosse um país independente, a dependência desta herança cultural da colonização
européia continuou erguendo seus prédios históricos na cidade.
O título de Paris na América[1],
no início do século XIX, tão aclamado pela sociedade da cidade mostrava como o
discurso do colonizador havia se estabelecido na cidade. Era necessário chegar
a um nível superior dentro da tradição ocidental e Portugal, no final do século
XIX não representava mais o modelo de metrópole. Muitos anos depois da
Independência, a cidade elege Paris como modelo de urbanidade, mais luzes e
menos igrejas. Neste cenário, ficava bem difícil estabilizar qualquer discurso
indígena na memória oficial da cidade. Ainda hoje, para a maioria dos
intelectuais da cidade, quando se fala em patrimônio, não há dúvida de que se
está falando da Belém portuguesa ou da Belém francesa.
As cidades brasileiras mais antigas compõem a cena da arquitetura
católica e colonial no Brasil. Para Canclini (2006:160):
O patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores oligárquicos, quer dizer, o tradicionalismo substancialista. Foram esses grupos – hegemônicos na América Latina desde as independências nacionais até os anos 30 deste século, donos “naturais” da terra e da força de trabalho das outras classes – os que fixaram o alto valor de certos bens culturais: os centros históricos das grandes cidades, a música clássica, o saber humanístico.
Hoje, Belém se constitui com seu Centro
Histórico e incontestavelmente ele faz parte da identidade da cidade. Mas,
existe um lugar em que há um escape da arquitetura colonial e cristã, trata-se
da maior feira ao ar livre da região, o Ver-o-Pêso. Lá já foi palco da
Cabanagem, uma revolta popular contra o Império brasileiro. Vários governos já
tentaram mudar sua dinâmica. Em muitos momentos as políticas públicas já
deixaram a feira literalmente entregue
aos ratos e às baratas. Já ergueram no meio do Ver-o-Pêso o Mercado de Ferro, o
Mercado de Carne, cujas singularidades arquitetônicas são inquestionáveis para
um padrão estético ocidental. É uma longa história. Mas, é o movimento dos
barquinhos, trazendo verduras, frutas, peixes e todo o colorido, pintando em
suas barracas uma grande aquarela amazônica, que deixa ver a forte memória
indígena viva no cotidiano de Belém. Lá também é o lugar em que se compram
alguns artigos da culinária paraense incorporados da tradição indígena como a
farinha, o tucupi, o jambu...
Essas águas, que contornam o Ver-o-Pêso são algumas das principais ruas
da região e dão conta de uma memória mais antiga que a colonial. Afinal, esses
rios que desenham a Amazônia, foram primeiro acarinhados pelas embarcações das
sociedades indígenas que por aqui viviam. Estas ruas eram trafegadas por
aqueles primeiros Tupinambá que estavam na beira do rio, quando os primeiros
portugueses chegaram.
Foto: Shirley Penaforte |
Olhando pelo avesso
Foto: Shirley Penaforte |
Nossa idéia de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore, não de murta: museu clássico antes que jardim barroco. Entendemos que toda sociedade tende a preservar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensar que é necessário uma pressão violenta, maciça, para que ela se deforme e se transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. [...] Talvez, porém, para sociedades cujo (in)fundamento é a relação aos outros, não a coincidência consigo mesmas, nada disso faça o menor sentido. (VIVEIRO DE CASTRO: 2007, 195).
Talvez
se a Belém da época dos Tupinambá exibisse edificações como as de Machu Picchu
dos Incas, no Peru, a consistência da arquitetura, que resiste aos séculos,
fizesse lembrar que outras civilizações já viveram nesta região. Reproduzimos a
cultura européia em nossas vidas e em nossas cidades e nem sequer negociamos
uma fronteira cultural em que possamos nos particularizar como uma outra
possibilidade de civilização. Talvez se olhássemos com mais atenção para os
discursos que se materializaram no Brasil, pudéssemos encontrar um novo
caminho, que não nos colocasse nem como colônia, nem como metrópole. Mas parece
que ficamos presos ao modelo instituído pelo colonizador e tão apaixonadamente
administrado por nós, que estamos nas academias ou nos cargos políticos das
grandes cidades administrando esta memória colonial.
O discurso se materializa nos corpos, nas telas, na
arquitetura, na comida. Ele vai muito além da palavra falada. Os dispositivos
que instituíram o sistema colonial foram bastante rigorosos e estiveram
presentes nas mais diferentes materialidades. Quando falamos sobre a história
das sociedades indígenas é quase impossível não esbarrar nestas estratégias do
sistema colonial, que atualmente são administradas por nós mesmos. Agora, somos
obrigados a pensar no que estamos fazendo com o que fizeram da gente. Por outro
lado, por mais violentos e rigorosos que tenham sido estes dispositivos sempre
houve quem resistisse a eles. O olhar como gesto interpretativo estabilizou
discursos, mas é também a partir do seu deslocamento que podemos, talvez, quem
sabe escrever uma outra história, onde não haja um único e absoluto discurso
dominante.
[1] No final do século XIX, por
importar um modelo cultural parisiense, que estava presente nas roupas, na
arquitetura, nas produções artísticas, coube à cidade de Belém o título de
Paris na América.
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