Desde o semestre passado eu tenho me entrosado com os moços que estudam
a história da ciência no Pará lá no Instituto de Educação Científica e
Matemática da UFPA. Eu muito mais ouço do que falo, o que é raro, porque
eles me ajudam muito a refletir sobre o conhecimento popular e o
conhecimento científico, incrementando o debate que tento estabelecer na
minha pesquisa de mestrado e na minha vida fora da academia. O grupo é
coordenado por um físico e seus integrantes mais antigos são homens
mestrandos e doutorandos com formação em física, química e biologia.
No encontro de hoje, debatemos um texto sobre a obra de José Veríssimo
chamada “A Educação Nacional” que foi publicada primeiramente aqui no
Pará em 1890. O texto é de autoria da professora e pesquisadora Maria do
Perpétuo Socorro G. de S. A. França. A autora faz uma exposição sobre o
pensamento de José Veríssimo sobre a questão da educação brasileira
naquele momento de transição do Império para a Nova República, e apesar
de ter sido escrito no século XIX, o texto de Veríssimo é rico em
complexidade e nos possibilita uma reflexão extremamente contemporânea.
Como o texto também apresenta a questão da educação da mulher
brasileira daquele momento (p. 193), um dos rapazes questionou a nós
mulheres, que hoje estamos compondo o grupo também, sobre a nossa
percepção a respeito das questões da “mulher moderna” e foi pontuando
algumas coisas que ele tem enxergado nas mulheres e na atualidade.
Acho que nenhuma pergunta poderia ser tão oportuna. Pelo momento que
tenho vivido e nos movimentos que tenho buscado fazer junto a algumas
mulheres do meu convívio (mais recente ou mais antigo). Aguardei que uma
moça falasse sobre como ela se percebe no contexto dos apontamentos e
ao fazer aquele famoso “filme sobre minha vida”, deparei-me com uma
dúvida sobre os questionamentos que ele fazia: “de que mulher moderna
você está falando?” Perguntei.
Veja bem, continuei. A mulher
brasileira não é uma mulher. Não existe a mulher brasileira. Nunca
existiu. Superficialmente, penso imediatamente em pelo menos quatro
mulheres brasileiras: a indígena, a negra e a branca. Então de que
mulher moderna brasileira você está falando? Repeti.
Recentemente, aprendi a ver os vários perfis de mulheres indígenas
existentes no Brasil contemporâneo, como bem me apresentou a professora
Ivânia. A mulher indígena que vive da terra e busca cultivar sua
ancestralidade com base nessa experiência também. Essa mulher pode ser
agricultora, militante, mãe, usuária das tecnologias disponíveis na
contemporaneidade. Então como será que essa mulher se sente ante a
“modernidade”? Será que uma mulher indígena que opte por viver no urbano
pode ir a uma entrevista de emprego usando o cocar, que é uma das
marcas identitárias de sua tribo? Essa mulher será aceita nessa
modernidade?
E a mulher negra moradora da periferia ou dos
centros, de 22 anos, como a Bruna Raiol ou de 29 anos como a Nega Suh?
Como se sentem essas mulheres nessa modernidade? E eu? Como me sinto?
Fiz algumas escolhas, sim, mas nada impede que eu mude de ideia e que
minhas escolhas sejam reconfiguradas. Posso não ser mãe hoje, mas ano
que vem posso desejar ser mãe e ainda assim não abrir mão de outras
escolhas feitas anteriormente. É costumeiro ouvir que a mulher de 35
anos solteira e sem filhos não nasceu pra casar porque ela é
independente. Mas qual a conexão entre as duas opções? Não posso ser
independente e decidir não ser solteira? E mais, será que ao me
reconhecer em minha ancestralidade e, da mesma forma que aquela
indígena, eu for a uma entrevista de emprego usando o turbante que a
minha mãe me ensinou a usar e que era característico das primeiras
mulheres negras africanas que foram escravizadas no Brasil? Será que sou
moderna o suficiente para ser aceita nesse emprego?
Quanto às
mulheres brancas, a facilidade de aceitação parece estar estabelecida.
Mas e se essa mulher for casada com outra mulher? E se essa mulher for
casada com um homem, mas também se relacionar com mulheres? Como essa
mulher é aceita nessa modernidade? E se naquela entrevista de emprego,
se questionada sobre seu estado civil ela responder que é casada e que
sua mulher está grávida? Essa modernidade aceitará essa mulher?
E mais, se uma mulher faz questão de ser dona de casa aos 30 anos para
cuidar da filha e combina com o marido que ele será o responsável pela
manutenção econômica da família? Essa mulher não é moderna? Ela será
aceita por essa modernidade?
O que legitima, então, uma “mulher moderna”?
Compreendo que essa é aquela vontade de verdade presente nos discursos
hegemônicos. A mulher moderna é rotulada, exigida e treinada para ser
“super mulher”. Tal qual na educação da mulher no século XIX, como
mostra o texto que debatemos.
Eu não aceito esse rótulo. Não
quero ser moderna, nem “super mulher”. Mas quero protagonizar minha
história, disso não abro mão. E penso que muitas mulheres já conseguiram
alcançar esse protagonismo, ainda assim não é o caso de todas, mesmo as
muitas que se adaptam a esse novo discurso hegemônico e colonialista do
“papel da mulher moderna”.
Quero concluir dizendo que não
compreendo a existência de uma mulher moderna brasileira, mas que existe
uma diversidade de mulheres brasileiras, como sempre existiu. Porque lá
no texto do Veríssimo, quando ele descreve a educação enciclopédica que
a mulher recebia no século XIX, ele não considera a diversidade de
mulheres existentes já naquela época, visto que a educação feminina era
voltada apenas para a mulher branca aristocrata.
Ao final da minha intervenção, três homens começaram a contar alguns detalhes de seus casamentos e falaram de suas mulheres.
Cada mulher que eu citei naquele momento é uma mulher real em minha
vida. Não pude me permitir o reforço do estereótipo, porque entra as
mulheres brasileiras que eu conheço nenhuma é invencível, são todas
humanas e estão construindo histórias tão diferentes que eu não pude me
calar.
Thiane Neves
Fonte: http://www.facebook.com/nazare1977/posts/10200859811675886?comment_id=6042237&offset=0&total_comments=4¬if_t=mentions_comment