Agenor Sarraf Pacheco
Viagens pelos rios do imenso Vale Amazônico, mais precisamente pelo estreito de Breves, no lado ocidental marajoara, em olhares de relances acompanhamos um teatro vivo de uma mãe a chorar a perda de seus filhos. Trata-se da mãe-natureza diluída em lágrimas de sangue no silêncio da floresta saqueada. Neste cenário, homens escravizados, populações locais desfiguradas, espíritos das matas afugentados, culturas ribeirinhas invisibilizadas desvelam dramas de uma história subterrânea tristemente vivida por populações amazônicas de faces marajoaras, filhas das mestiçagens afroindígenas.
Nas avenidas aquáticas, tessitura de cartografias amazônicas, continuamos assistindo a passagem de empurradores e balsas abarrotadas de toras de madeira, apenas ao som das embarcações que nos transportam de lá para cá e daqui pra lá. Não há mais vozes ensurcedoras outroramente ouvidas por Dalcídio Jurandir, na saga dos viradores de madeira, quando denunciou em matéria jornalística de 1939 a exploração sofrida por morenos corpos humanos, atrofiados pela vigília da floresta derrubada. Hoje, entre nós marajoaras, a lei do silêncio impera. Decreta-se a morte dos habitares míticos.
Nessa esteira, sangradas pelos instrumentos da cultura material rural, moderna e tradicional (potentes motores-serras, serrotões, machados, terçados) e em cicatrizes de cores artificiais para facilitar leituras de suas classificações, a floresta segue sua via-crúcis pelos rios da Amazonia Marajoara, destruída pelo ritmo da ganância de um capitalismo selvagem aposentado dos discursos acadêmicos, mas na ativa, vivo e voraz em territórios amazônicos.
Deitado em sangria rumo a outros portos, visibilizando estéticas do holocausto recriado em paisagens marajoaras, esse patrimônio natural leva consigo territorialidades de nosso patrimônio cultural e sensível. Os personagens lendários e míticos da mãe-natureza desaparecem de nosso imaginário à proporção que árvores de acapu, virola, quaruba, pau-amarelo, cedro, seus antigos habitares, são vencidos pela fúria do capitalismo industrial madeireiro em expansão e dominação nos quatro cantos de nossas fronteiras físicas e culturais amazônicas.
Esse processo fincou raízes no espocar da década de 1930, quando os seringais amazônicos foram aposentados e classificados como inúteis para a lógica mercadológica internacional. História semelhante vive nossos idosos, já que depois de longas décadas de trabalho foram escorraçados do direito à velhice, à memória e à transmissão de suas experiências e sabedorias.
Tal constatação faz lembranças de memórias narradas por antigos moradores do “abandonado arquipélago de Marajó” tomar conta de nosso interior. Uma dessas vozes insiste em não esquecermos suas proféticas palavras: “antes aqui existia muita visagem, depois que a luz elétrica chegou elas foram sumindo”. Ou histórias contadas por uma antiga curandeira, ligada ao mundo da encantaria que, ao ser questionada sobre o modo de vida na cidade do passado, sem titubear assinalou: “em outros tempos, os encantados caminhavam livremente pelas ruas da cidade. Fosse de dia, fosse de noite, facilmente encontrávamos Manoel das Flores, Tupinambá andando por aqui”.
Se um modo de vida urbanocêntrico, europeu, disciplinador e pretensamente modernizante, instalado na região marajoara com o alvorecer da década de 80, expulsou das antigas vilas o conjunto de entidades das matas e das águas, nos dias de hoje, esses seres paradigmáticos estão em apuros, pois suas vidas andam por um fio. Com isso, a morte da floresta e a poluição das águas, últimos redutos de vivência desses seres que povoam nosso imaginário mítico e são fontes para desconstruirmos cosmologias colonizadoras e dominantes, decretam que estamos na liminaridade de nossos modos de ser, acreditar, viver.
Diante da iminente morte dos habitares míticos, como amazônidas, paraoaras, marajoaras, o que estamos fazendo? Nossos diplomas, escritas e belos discursos estão sendo canalizados para que rios de vida e verdade? Este texto cumpre, portanto, uma missão: sem perder a capacidade de indignação, mesmo com poucas ferramentas para fazer frente à guerra em defesa da cultura e da vida de populações locais, seu tom poético é antes de tudo uma escrita de denúncia, politicamente comprometida com a escuta dos clamores de nossos irmãos de beiras de rios, lagos, igapós, várzeas e terras firmes, silenciados pelas vozes e desmandos de poderes recolonizadores.
Publicado em 11/12/2009